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Tribunais estaduais permitem penhora de salários, mas falta uniformizar critérios

Os 26 tribunais de apelação da Justiça estadual e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) têm permitido a penhora dos salários de devedores para quitar obrigações não alimentares, uma possibilidade que não está na lei.

Drobotdean/Freepik

Impenhorabilidade do salário é tratada de forma distinta nos 27 tribunais estaduais

Levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico mostra que a posição foi assimilada com base em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, especialmente o EREsp 1.874.222, julgado pela Corte Especial em abril do ano passado.

A corte superior decidiu pela possibilidade de flexibilizar a regra do artigo 833, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, que veta a penhora de salários exceto para pagar prestação alimentícia e para valores que ultrapassem 50 salários mínimos mensais.

O problema que resta é que não existem critérios sobre como a flexibilização deve ser feita. Isso tem levado desembargadores estaduais e distritais a adotar uma miríade de entendimentos.

A uniformização do tema poderá ser promovida pelo próprio STJ, que vai estabelecer tese vinculante sob o rito dos recursos repetitivos. O julgamento será feito na Corte Especial, sob a relatoria do ministro Raul Araújo.

O Tema 1.230 dos repetitivos visará a “definir ​o alcance da exceção da regra da impenhorabilidade de salário para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a 50 salários mínimos”.

Primeiras tentativas
Dada a quantidade de processos sobre endividamento em um país de superendividados, alguns tribunais tomaram a iniciativa de buscar uma uniformização. Dois deles julgaram o tema em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).

Trata-se de um instrumento semelhante ao dos recursos repetitivos do STJ, por meio do qual o tribunal fixa uma tese em temas de efetiva repetição de processos e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) foi um deles. A 2ª Seção Cível da corte concluiu que é permitida, de forma excepcional, a penhora do salário para pagar dívida não alimentar, desde que o percentual não ultrapasse o limite de 30% da verba líquida (clique aqui para ler o acórdão).

Esse número é o mesmo usado pela Lei 10.820/2003 para limitar o desconto no salário nos casos de empréstimo consignado.

Lucas Pricken

Raul Araújo é o relator do recurso em que a Corte Especial do STJ vai uniformizar a questão

Relatora do IRDR no tribunal mineiro, a desembargadora Juliana Campos Horta chegou a apontar que melhor seria liberar os juízes para decidir em cada caso. Mas ela concluiu que, para evitar abusos, esse limite deveria ser adotado para “tornar a tese menos sujeita a divergências de interpretação”.

Outro tribunal a usar o IRDR foi o TJ do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), que também permitiu a mitigação da regra de impenhorabilidade dos salários com o limite de 30% sobre os vencimentos, “desde que a constrição não comprometa a subsistência do devedor” (clique aqui para ler o acórdão).

Esse é o critério mais popular. Nenhuma das decisões analisadas pela ConJur autorizou a penhora de mais de 30% do salário. Outros tribunais a usar esse limite são os de Mato Grosso, Pará e Maranhão.

No TJ de Goiás (TJ-GO), um acórdão da 3ª Câmara Cível adotou o limite de 30% porque, nesse montante, é possível presumir a preservação da subsistência digna do devedor, especialmente porque ele nada alegou a respeito na ação.

Novos limites
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é o único a adotar um critério numérico. Acórdão recente da 34ª Câmara de Direito Privado analisou a jurisprudência do STJ e concluiu que, se o devedor recebe até cinco salários mínimos (R$ 7 mil), o salário é sempre impenhorável.

Já se os vencimentos estiverem entre cinco e 50 salários mínimos (R$ 70,6 mil), a penhora vai depender das particularidades. A maioria das cortes, no entanto, tem optado por essa análise caso a caso.

O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), por exemplo, recusou a uniformização ao não admitir uma proposta de IRDR em julgamento feito pelo Órgão Especial (clique aqui para ler o acórdão).

Relator da matéria, o desembargador Jorge Wagih Massad afirmou que uma tese não seria cabível porque a suposta divergência no padrão decisório das câmaras do tribunal não é fruto de concepções distintas de Justiça.

“O dualismo decisório está intimamente relacionado com as nuances fáticas das demandas julgadas pelos órgãos fracionários. Não há, portanto, diversidade de orientação jurídica entre câmaras, mas distinta qualificação dos fatos que servem de subsídio para que o órgão adote uma determinada razão.”

Mão firme
No TJ do Rio de Janeiro (TJ-RJ), a orientação adotada pela 17ª Câmara de Direito Privado indica que a situação em que a impenhorabilidade representa um abuso de direito do devedor requer firmeza do Poder Judiciário — logo, caberá a penhora do salário.

Essa firmeza é maior em algumas cortes do que em outras. A ConJur identificou acórdãos que admitem a penhora de parte do salário de pessoas que recebem valores módicos.

A 3ª Câmara Cível do TJ da Bahia (TJ-BA), por exemplo, considerou adequada a penhora de 20% do salário de uma devedora que recebe R$ 1,9 mil por mês, de modo a fazer o pagamento da dívida sem comprometer sua existência digna, segundo os julgadores.

A 1ª Câmara Cível do TJ de Tocantins (TJ-TO) mandou penhorar 30% do salário de uma servidora pública, de R$ 3,9 mil.

E a 2ª Câmara Cível do TJ do Piauí (TJ-PI) entendeu ser possível a penhora de 30% dos vencimentos de uma pessoa que recebe R$ 2,7 mil, até quitar a dívida, que naquele momento era de R$ 39,2 mil.

A quem cabe a prova?
Outra grande questão frequentemente enfrentada pelos tribunais brasileiros é a seguinte: a quem cabe comprovar que a penhora ameaça ou não a subsistência digna do devedor e de sua família?

Há uma linha, adotada pela 14ª Câmara Cível do TJ-PR, segundo a qual essa comprovação é de responsabilidade do credor, enquanto autor do pedido, conforme o artigo 373, inciso I, do CPC.

ConJur

Uma das câmaras do TJ de São Paulo fixou limite para impenhorabilidade absoluta

Outros tribunais, como os de Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Tocantins, Amazonas, Roraima e Pará, têm acórdãos que conferem esse ônus ao próprio devedor, que é quem mais facilmente poderia fazer a prova.

Frequentemente, essa posição vem baseada no artigo 854, parágrafo 3º, inciso I, do CPC, segundo o qual cabe ao executado comprovar que as quantias tornadas indisponíveis são impenhoráveis. É essa a jurisprudência da 1ª Câmara Especial do TJ de Rondônia (TJ-RO).

Quando a 7ª Turma Cível do TJ-DF decidiu desse jeito, o voto vencido do desembargador Getúlio Moraes Oliveira trouxe considerações relevantes sobre o tema (clique aqui para ler o acórdão).

Ele argumentou que não seria razoável impor ao devedor provar aquilo que a própria lei já lhe conferiu (a impenhorabilidade). Caberia ao credor, para afastar a regra legal, demonstrar a potência financeira da outra parte.

“Todavia, como as exceções, para sua observância, terminam por gerar outras exceções, creio que seria razoável que, antes de se efetuar a penhora, pelo menos se intimasse o devedor, dando-lhe conhecimento da pretensão do credor e facultando-lhe prazo para impugnar o pedido.”

Há, ainda, os tribunais mais flexíveis. Um acórdão da 2ª Câmara Cível do TJ do Acre (TJ-AC) primeiro disse que o credor não comprovou que exauriu outras possibilidades de satisfação do crédito, nem mostrou a ausência de prejuízo na penhora do salário do devedor.

Ainda assim, permitiu a penhora em 15% do salário do devedor, com o objetivo de “não criar uma proteção desarrazoada ao devedor em detrimento do direito fundamental à efetividade dos provimentos jurisdicionais e à segurança jurídica do credor”.

Melhor uniformizar
Na opinião da advogada Nara Rodrigues, do escritório GVM Advogados, esse cenário faz com que seja importante uma definição pelo STJ, já que os julgados até agora não geraram súmula ou vinculação.

“Nesse sentido, o STJ precisa não só pacificar o entendimento na corte a respeito da penhorabilidade de salários inferiores ao mínimo previsto no art. 833 do CPC, como também estabelecer critérios para afastar a impenhorabilidade, os quais sempre deverão levar em conta o caso concreto.”

Elvis Cavalcante Rosseti, da banca Diamantino Advogados Associados, destaca que, uma vez flexibilizada a impenhorabilidade do salário, a falta de critérios poderia levar a abusos ao ponto de jogar o devedor em uma situação de miserabilidade ou bancarrota.

“É natural e salutar que o STJ enfrente a questão. Devemos lembrar que o entendimento fixado até então nessas decisões era utilizado como uma referência argumentativa, e os magistrados não estão obrigados a seguir o mesmo entendimento. Isso acaba por gerar insegurança para o jurisdicionado.”

Rafael Felisbino, do Peixoto & Cury Advogados, afirma que a flexibilização é necessária porque o critério do CPC de penhora só acima de 50 salários mínimos é inadequado e pouco factível. Mas ele faz um aviso:

“A flexibilização deve ser exercida na forma de flexissegurança. Nâo se pode tirar um texto fora de seu contexto para se conseguir um pretexto. Nada impede a flexibilização da norma, desde que realizada com parcimônia, prudência e, acima de tudo, justiça”.

“O Tema 1.230 certamente buscará uniformizar as decisões da própria Corte Cidadã sobre a questão para o fim de criar segurança jurídica e dar o direcionamento que será replicado nos tribunais inferiores”, concorda Rodrigo Forlani Lopes, do Machado Associados.